Casa da Flor


A CASA DA FLOR—UMA ARQUITETURA POÉTICA




“Não sei o que tenho eu com os cacos... Quebra um prato, eu fico tão contente que me dê um caco, depois eu transformo o prato numa flor. Fico tão satisfeito. Aí tem um mistério na minha vida que eu mesmo não posso compreender.”

Gabriel Joaquim dos Santos, negro, pobre trabalhador de salinas e lavrador, nasceu a 13 de maio de 1892, em São Pedro da Aldeia, município do Estado do Rio de Janeiro, região sudeste do Brasil. Era filho de um ex-escravo e feitor numa fazenda da região e uma índia “pega no laço” por seu pai.

Em 10 de abril de 1899, a família mudou-se para uma propriedade de 4 alqueires, comprada no Vinhateiro, a cinco quilômetros da cidade, onde a família—os pais e seus doze filhos—se instalou numa casa de pau-a-pique, pequena, de 2 cômodos, de pé até hoje. As mulheres da família dedicavam-se a cerâmica, fabricando panelas e potes de barros, queimados ali mesmo, numa “coivara” de lenha. Os homens trabalhavam no campo; o filho mais velho, carpinteiro habilidoso, fabricava pilões,colheres, gamelas.

Gabriel, desde cedo, manifestou uma tendência para as artes: cantava, tocava violão e harmônica , fazia flores de papel crepom, desenhava e pintava, fazia versos. Muito religioso, esculpia santos em barro, para a capelinha que ele mesmo construiu ao lado de sua casa. Intuía, desde criança, que teria que viver sozinho, para dar vazão à sua grande criatividade.

Inspirado por um sonho, resolveu, em 1912, construir seu lar. Fez um pequeno quarto, onde logo passou a viver, e pouco a pouco, quando dispunha de tempo e material, ergueu mais uma sala e um depósito. A área construída chega a 40m2, é uma casa de pé direito baixo, que em alguns pontos não chega a dois metros. Não faz banheiro nem cozinha. Não dispunha de energia elétrica; para iluminar suas noites, uma lamparina de querosene. Não há água encanada: para obter água potável , ele criou um sistema engenhoso de captação da água da chuva.

No alto de um pequeno morro, 7m acima do nível da rua, ela é cercada por árvores, arbustos,e muitas flores, perfeitamente integrada à natureza ao redor. Chega-se por uma escadaria de degraus baixos, que vai terminar no lado oeste da construção. Um corredor ladeia a habitação pelas fachadas norte e leste e vai levar às duas portinhas de entrada. Para cercar a casa, o artista construiu um estranho muro de retalhos de potes, jarras, tijolos e telhas.

Em 1923, veio-lhe, através ainda de um sonho, a idéia de enfeitar a casa. Sem recursos para comprar o material necessário, resolveu depois de muito “ matutar”, aproveitar o refugo das construções locais e o lixo doméstico, coisas jogadas fora, como imprestáveis para uso. “Pensei em fazer do nada”. Criou um primeiro bordado, ao lado de sua cama, de jacarandá, também construída por ele. Prosseguiu com outros enfeites, e sem terminar a parte interna, passou a embelezar a parte externa. Não havia um projeto sem regras rígidas a seguir. A inspiração quase sempre lhe vinha dos sonhos, ou ainda, de seus devaneios, antes de dormir.

Continuou assim a recolher no lixo nos materiais para criação dos enfeites, até 1985, quando faleceu. Para Gabriel, não havia materiais nobres, preferia mesmo os cacos, pois via, nesses materiais mais humildes, possibilidades que as pessoas comuns não conseguiam perceber. Sem preconceitos, foi recolhendo, ao longo de uma eterna peregrinação, pedaços de telhas, tijolos, postes, jarras, ladrilhos, copos garrafas, espelhos, espelhos, xícaras, pratos bibelôs, e muitos materiais insólitos, como lâmpadas queimadas, faróis de automóvel, correntes, ossos de animais, pedras, ralos, de chão, canaletas de iluminação elétrica, caramujos, conchas, uma estrela do mar, um emblema metálico da Volkswagen, uma grade de radiador.

“Aquelas flores é feita com cacos de telha, de prato, é uma coisa mais forte, flor de pedaço de pedra, porque quero que fique aí, quero fazer que não se desmanche. A chuva bate, lava, é sempre, é uma sempre-viva aquilo”.

Então, foram surgindo, de seus sonhos e de sua prodigiosa imaginação, flores, muitas flores, compostas com retalhos de garrafas, de partos, de telhas. A profusão das “sempre-vivas”, nas paredes, no muro e na escadaria, acabaram lhe sugerindo o nome de sua obra única: A Casa da Flor. Outros ornamentos de decoração, nunca iguais, foram ainda acrescentados: mosaicos com caquinho de seixos; colunas de pedra e cimento; esculturas fantásticas; foram modeladas com ci mento de uvas, flores, folhas, volutas; luminárias de lâmpadas queimadas; nichos para abrigar objetos importantes—um osso de baleia, um cachorrinho de louça; retratos afixados às paredes—dele mesmo, de um amigo, de Getulio Vargas. À medida que completava um enfeite considerado como mais importante, modelava com cimento, ou escrevia com caneta nas paredes, frases e datas para registrar o acontecimento.

Fez uma arcada para separar, no quarto de dormir, o espaço destinado ao repouso, onde ficaria sua cama, do que ele chamava o “altar dos livros”, uma barroquíssima estante de alvenaria, cercada por paredes coalhadas de aplicações coloridas—na verdade o lugar mais nobre da casa.

Assim, Gabriel, com total liberdade de criação, foi preenchendo os espaços vazios, numa decoração luxuriante. Total exuberância: é o barroco intuitivo, criado por um negro brasileiro, descendente dente direto do africano e do índio, numa profusão de influencias culturais, de visões de mundo, de maneiras de sentir as coisas. Como dizia Nietzsche: - Eu vos digo: é preciso ter o caos dentro de si para poder dar à luz um estrela dançante.

“A criatividade é o fruto da intuição, da imaginação, da paixão e de um sólido bom senso”;

(Bhoulbhoulayan Bhatti)

Sem formação técnica especializada, Gabriel supriu, com sua grande inteligência, todas as limitações e, utilizando como recurso principal a intuição e com auxilio apenas de uma colherzinha de pedreiro e um pequeno alicate, aprendeu sozinho a executar uma série de tarefas. Fez de tudo: foi pedreiro e carpinteiro, arquiteto e construtor, operário e artista. Segundo suas próprias palavras: “Eu não tive escola, aprendo no ar, aprendi no vento...”

Alfabetizou-se rapidamente, já homem feito, aos 36 anos. Nunca teve a oportunidade de freqüentar uma escola, mais curioso e inquieto, resolveu aprender a escrever para preservar a história de sua família, dos amigos, de sua região, do seu país.

Pediu a um menino, seu vizinho, já alfabetizado que ensinasse. “as letras”.

Depois de estudar a cartilha, pode ler e “definir a Bíblia” e começar a anotar, sistematicamente, em cadernos baratos, todos os fatos que o impressionavam, num comportamento típico de um intelectual erudito. A maioria das anotações refere-se a nascimentos e morte de parentes e conhecidos, e ainda seus casamentos, doenças, acidentes; aos salários recebidos na salina onde trabalhava; aos preços dos gêneros alimentícios; aos melhoramentos introduzidos na região—como achegada da luz elétrica , da estrada asfaltada; as graves tragédias—incêndios, temporais, naufrágios—e a alguns fatos políticos da história do país.

Os dados, escritos em letra de forma, não são relatados em ordem gronológica: numa mesma página são relatados acontecimentos ocorridos em datas diferentes. Segundo relato de parentes, Gabriel era dono de excelente memória e a ela sempre recorriam em caso de dúvidas quanto a essas datas, que as sabia de cor.

A compulsão em memorizar os acontecimentos vivenciados é explicada por ser ele herdeiro inconsciente da tradição africana do registro oral dos acontecimentos. Os tesouros do conhecimento da região dos savanas ao sul do Saara são preservados pela memória excepcional de alguns velhos, que viajam de aldeia em aldeia, ouvindo e passando adiante, as informações sobre famílias, clãs e etnias, num esforço de reforçar a identidade de seu povo. Gabriel mantinha essa mesma atitude em relação à preservação da historia de seu grupo social, mas ao contrario de seus ascendentes africanos, que dependiam apenas da oralidade, utilizava ainda a escrita para conseguí-la.

Viveu sempre sozinho na Casa da Flor, não casou nem teve filhos. Por companhia apenas seus cachorros.Mas, para Gabriel, como ensinava Aristóteles, sua obra, um objeto estético, trazia-lhe “uma satisfação fora da necessidade imediata, uma alegria sensual”.

“De noite, acendo a luz, me sento nessa cadeira, oh, que alegria.Quando eu vejo tudo prateado, fico tão satisfeito... Tudo caquinho transformado em beleza... Eu mesmo faço, eu mesmo fico satisfeito, me conforta...”

“Aqui em Cabo Frio tem casa, tem palacete, mas é casas bem organizadas, é a força da riqueza e a força da engenharia. Mas eles vêem aqui é a força da pobreza. Eu quero é que eles se admirem é a força da pobreza”.

UMA TENTATIVA DE COMPREENSÃO



“A arte não deve ser anunciada, ela deve surgir quando não esperamos, como uma surpresa”.

(Jean Dubuffet”



É difícil classificar ou analisar a Casa da Flor; ela subverte as normas estabelecidas de produção estética.Os estranhos materiais usados e o magnífico resultado obtido com os arranjos ornamentais que cercam toda a casa foge aos padrões convencionais da arquitetura e da arte. Mas “é talvez o que o fantástico significa: ser tão excitante ou estranho, como ser indescritível”.

Gabriel, como outros construtores de uma arquitetura não oficial, de uma arquitetura espontânea, criou formas ditadas por sua fantasia livre de modelos, regras. Para isso, teve que se isolar, teve a coragem—e, em conseqüência disso o privilegio—de construir para si a casa ideal, nascida somente de suas idéias, fruto da elaboração do consciente e de manifestação do inconsciente. Dizia ele “uma casa feita de pensamento e sonho”. Para ele não havia distinção entre a vida e a arte, pois seu lar era ao mesmo tempo abrigo e uma obra de muita sofisticação plástica. É a “arte concretizada” idealizada por Mondrian. Para o nosso artista intuitivo, a arte fazia parte do fluxo da vida, era mais um respirar natural do que do que uma atitude de exceção. Ele próprio se referia à habitação como sendo “uma obra da natureza, uma casa franca, sem mistérios: o segredo ali é o ar livre”.

Gabriel era considerado excêntrico, pela vizinhança, tornou-se mesmo um solitário, um ermitão, já que o mundo que o cercava não podia compreende-lo, não podia entender o que fazia. Isolado, encontrou uma maneira natural de viver, pode expressar seus sentimentos livremente, seguir seus desejos e criar à sua maneira. Seus sonhos, tornados realidade na pedra, nos cacos, no cimento, na madeira, nos resíduos industriais, servem como prova de que é possível conviver concretamente com a poesia.

Irmão espiritual de Gabriel, outro grande artista e mestre da arquitetura fantástica é o modesto carteiro Ferdinand Chevel também orgulhava-se de sua obra, que dizia ser fruto de um homem que fez tudo sozinho.

Podemos citar ainda Neck Chand, nascido na Índia, operário de construção e reparação de estradas, que construiu um reino fantástico, saído de seus sonhos, dotado de montes e vales, quedas d’águas e pontes, e figuras cobertas por mosaicos, no qual trabalhou sozinho durante oito anos. Tanto quanto Gabriel, Ceck Chand sabia da beleza intrínseca doa materiais mais humildes, mesmo a os rejeitados; também ele os recolheu—pedras, pedaços de cimento—e os reciclou improvisando constantemente, também ele seguiu infalivelmente a natureza.

Sabemos que o “iletrado, naturalmente impregnado da experiência coletiva e da energia criadora dos seus ancestrais, possui, nos mais altos graus as qualidades da intuição e da imaginação”.

Como outra semelhança entre as duas obras, a teatralidade, concretizada no conjunto arquitetônico da Índia em sua construção em diferentes planos, nos quais o visitante, para apreciá-la, é obrigado a caminhar devagar, ao se curvar ao passar de um plano para outro. Na Casa da Flor, percebe-se uma intenção dramática por parte do autor, que, como um excelente diretor de cena ou como legitimo representante do barroco, conduz a nossa emoção, num crescendo, mansamente, desde a chegada pela velha estradinha, quando se avista no alto a construção. Sobe-se os degraus, largos e baixos, lentamente, para melhor apreciar as esculturas do jardim. Quando termina a escada, aumenta o numero de enfeites. Surgem os bordados das paredes e do muro, bizarro, diferente. Caminha-se devagar, tantas as surpresas. Contorna-se o corredor e, a seguir, um lugar para descansar, para respirar, para digerir o que foi visto: os banquinhos de pedra e ladrilhos, incrustados na parede e no muro. Chega-se à porta e a entrada na sala acontece carregada de dramaticidade: depois dos olhos se acostumarem à escuridão, começam a aparecer, vagarosamente, como num passe de mágica, as paredes coalhadas de enfeites, centenas de cacos coloridos aplicados numa decoração surpreendente. O efeito da passagem da luz intensa para a penumbra do interior e, em seguida, para a percepção desta festa de cores e reflexos, formas e recortes, é de cortar a respiração, força-nos a ficar admirando tudo em silencio. Gabriel sabia, ao afirmar que não desejava luz elétrica em casa, que a magia conseguia por este truque, estaria perdida com a chegada brusca e instantânea da luz.

Ao ver as imagens da Casa da Flor faz-se sempre uma associação ligando Gabriel ao grande mestre das reformas orgânicas e fantásticas, o arquiteto catalão Gaudi. O estilo bizarro de ambos, “as formas orgânicas cristalizadas na cerâmica e nas esculturas”, o uso apaixonado dos cacos, o amos à natureza, na qual ambos se inspiravam, o fervor religioso, o misticismo, o celibato, todas essas coisa revelam dois espíritos em sintonia, separados por milhares de quilômetros.. Um com sólida formação erudita, em contato com as obras dos grandes mestres do mundo, de todas as épocas; o outro, artista pobre, que viveu isolado de tudo, despossuído, autodidata, mas que construiu também uma obra belíssima, impregnada de poesia e humanidade.

Podemos ainda fazer algumas observações sobre a criação de Gabriel: ela possui uma qualidade ímpar—a perfeita integração com o meio ambiente. Está plantada harmoniosamente na encosta do morro, não se sobressai à natureza ao redor, ela se funde naquele espaço, não somente pela forma mas também pelas cores da terra, da vegetação, das pedras se misturam naturalmente com o material aplicado. Por força de um mimetismo singular, de alguns ângulos, as flores parecem mesmo mais algumas flores do jardim natural, agreste e muito colorido ao redor.

Uma constatação surpreendente é a de que Gabriel, tal como um animal que usa o instinto para resolver os problemas de iluminação e ventilação de sua toca, plantou as paredes em paralelo com as direções norte, sul, leste, oeste. Sem nenhuma experiência anterior, ele direcionou as duas portas da entrada para o leste, para o nascer do sol, favorecendo a ventilação da casa, já que, por receber somente o sol da manhã, ela se conservava fresca durante todo o dia. Os dois pontos de entrada da luz solar mais a janela do depósito—voltada para oeste, para o poente—colocada aqüidistante dos dois, tem como conseqüência uma distribuição equilibrada de luz. Elas iluminam o ambiente, o interior da habitação, mas protegem a câmara, o lugar de dormir, o lugar protegido onde ele se recolhia para descansar, o lugar mais escuro, próprio para o repouso.

Lévi-Strauss classificou como bricoleur aquele que executa operação que consiste em remendar coisas ou fazer objetos de pedaços de outros objetos. Segundo ele, caracteriza o bricoleur o fato de operar com materiais fragmentários já construídos, ao contrário do engenheiro que para dar execução ao seu trabalho necessita da matéria-prima. O bicoleur utiliza sempre meios e alternativas que evidenciam a ausência de planos preestabelecidos e não obedecem às normas adotadas pela técnica. Ele não fica subordinado à obtenção de matéria-prima e ferramentas. Ao contrário, ele usa da liberdade de sua fantasia para criar com o que consegue arranjar. Gabriel como já vimos, recolhia os materiais pelo que podiam servir. Como esses elementos que possuía, ele fazia e refazia as combinações, usando sempre a imaginação. Grande variedade na composição desses conjuntos observa. Não há dois enfeites iguais. Os elementos da decoração iam sendo combinados pelo artista, à procura de simetria, do equilíbrio na distribuição das massas, da harmonia de cores e formas, à procura da beleza. Não importava a destinação primitiva dos elementos usados, o que lhe interessava era o resultado final. Procurava sempre novos significados para esses elementos: os azulejos, as lâmpadas, foram sendo aplicados com outras intenções e que iam produzir resultados brilhantes e inesperados. A poesia do bicoleur vem de que ele não se limita a executar; fala por meio das coisas. Sem jamais completar seu projeto, o bicoleur põe-lhe sempre algo de si mesmo.

Quero também me deter um pouco na discussão sobre a sabedoria das construções da terra já que a Casa da Flor se enquadra nessa característica— parte dela feita de pau-a-pique, som seus bancos e armários de alvenaria, sensualmente aplicados, sua bela e profusa ornamentação organicamente associada à paredes, com total unidade de matéria.

O homem do povo, utilizando a terra, arrancada gratuitamente da natureza, “consegue adaptá-la, em múltiplas variações, às condições peculiares do meio social e econômico, geográfico e climático.” Por interesses econômicos entretanto, essas tecnologias, mais primitivas e sabias, são olhadas pelas elites— que privilegiam o concreto, o aço, o alumínio—como sinônimo de pobreza, e as virtudes e inteligência de seu uso são desprezadas e não reveladas, principalmente aos que mais precisam conhecê-las: engenheiros e arquitetos. Segundo Jean Dethier, em seu livro Arquitetura de terra—ou O futuro de uma tradição milenária, as “ tecnologias tradicionais da terra, são no entanto, universais, e um terço da população mundial chega a se utilizar delas, tanto em regiões quentes e secas, quanto na chuvosas e úmidas”.

Utilizada também para o revestimento das paredes, a terra crua proporciona ao homem o exercício da criatividade individual em sua decoração. Em muitos países do mundo, mas principalmente no continente africano, o tratamento das fachadas, executado com evidente prazer por segmentos tradicionais da população, aparece com verdadeira linguagem plástica “abstrata, geométrica, simbólica e figurativa”. Assim, a arquitetura, torna-se, ao mesmo tempo, a , a expressão de um profundo impulso criativo em um espetáculo de prazer.

“Eu quero os cacos porque dos cacos vou fazer as coisas pra eles se admirar. Pra que eu quero ganhar uma jarra nova? Jarra comprada eu não preciso. Isso não tem graça”.

Que dizer ainda da opção de Gabriel pelos cacos? Da metamorfose do lixo em produto artístico, da arte marginal que ele tão bem representa? De seu trabalho de vanguarda, no inicio do século, isolado num recanto da América do Sul, enquanto na Europa, no grande pólo irradiador de movimentos artísticos, à mesma época, artistas de renome revolucionavam os conceitos de arte até então vigentes, transformando o objeto inanimado em material precioso para criação artística? De sua função arquetípica, qual verdadeiro alquimista, que transformava o feio, o sujo, o estragado, em flor, flor/cálice, símbolo maior do humano com o sagrado?

O homem do povo, sempre premido por grandes dificuldades econômicas e extremamente ligado às tradições de sua cultura, já tem incorporado em si a atitude de utilizar o que tem à mão, seja material fornecido pela natureza ao redor como ainda sobras de produtos industrializados, para criar toda espécie de utilidades de que precisa, desde a sua moradia até o brinquedo de sua criança. Simples sacos plásticos de leite servirão para fabricar uma sacola, um pneu de caminhão transforma-se em lata de lixo, um tubo de PVC vira flauta para o músico da Folia de Reis, retalhos de pano montarão uma encantadora bruxinha. Milhares de peças encontradas em qualquer feira ou mercado popular e nas casa de nossa gente mais simples, reafirmam essa tendência, sempre presente na arte em artesanato folclórico.

Nosso Gabriel, porém, com o insight havido em 1923 que resolvia seu problema de obtenção de material, chegou no topo, deu uma função mais nobre—a arte—ao emprego daquilo de que ninguém quer saber. A Casa da Flor nos aparece assim como uma solução poética para o desafiante problema de nossa era—o que fazer com o acumulo desordenado do lixo orgânico e industrial que nos ameaça soterrar a todos– e torna-se símbolo de coragem, da determinação e criatividade necessárias para superar momentos de grave crise.

Os artistas plásticos vão sempre expressar o espírito de sua época. Picasso, Miró, Braque, Kandinski, Paul Klee e outros, no inicio do século, começaram a utilizar detritos recolhidos no lixo. Essa valorização dos materiais grosseiros ao nível da arte nada mais era do que o velho principio alquimista, segundo o qual o objeto precioso que buscamos será encontrado na matéria mais vil.

A idéia de que as coisas tem uma alma secreta e que, portanto, um objeto significa “muito mais do que o olho pode perceber” foi compartilhada por muitos artistas. O pintor Kandinsky chamava a atenção para o aspecto fantasmagórico do objeto comum, que “só os raros indivíduos vêem nos seus momentos de clarividência e meditação metafísica”. Dizia ele: “Tudo o que era morto palpita. Não apenas o que pertence à poesia, às estrelas, à luz, aos bosques e às flores mas também um simples botão branco de calça a cintilar na lama da rua... Tudo possui uma alma secreta, que se cala mais do que fala.” “É caco, é caco, mais é coisa de muita importância”, dizia Gabriel.

Surpreendentemente, pelo isolamento em que sempre viveu, Gabriel faz parte desse grupo inovador para sua época, revolucionaria mesmo. Por ter optado em 1923 pelo material mais grosseiro, inútil e sujo para chegar à beleza, ele nos mostra que possuía, sem duvida a autenticidade, a honestidade,a coragem, enfim, a qualidades inerentes ao verdadeiro artista. Viveu mergulhado em si mesmo, nas profundezas de seu sonho e de sua fantasia, na reflexão sobre a vida e o mundo. Ser humano integro e forte, projetou sua intensa luz interior em sua criação poética. Sua casa, bordada com milhares de pedaços de coisas, achadas numa garimpagem que durou 62 anos, ou doadas de presente por conhecidos e parentes, sua casa nos aparece, assim, impregnada de sentimentalidade, é um verdadeiro relicário afetivo.

A casa é um coração que pulsa ardente e amoroso, e que ele generosamente nos oferece, ao dizer: “essa casa está aqui, a patente é de todo mundo”. Os belos ornamentos da Casa da Flor são, na verdade, as imagens do inconsciente de um homem lúcido e verdadeiro, os reflexos luminosos de uma alma poética e corajosa, são as flores que resultaram da boa digestão de tantos ingredientes dolorosos e difíceis, “tudo caquinho transformado em beleza”



UMA PESQUISADORA SOB A INFLUÊNCIA DO OBJETO DE SUA PESQUISA
Amélia Zaluar


RESUMO
O artigo fala da forte carga simbólica existente na Casa da Flor, obra prima da arquitetura espontânea no país. A autora relata ainda sua experiência durante o trabalho de pesquisa sobre ela e de como isso veio a contribuir para seu crescimento pessoal, ajudando-a em seu processo de individuação.


Conheci seu Gabriel e sua belíssima Casa da Flor em 1978, quando começava meu trabalho com a Arte Popular no Brasil, fazendo pesquisas no Rio de Janeiro e dando aulas. Estava em Arraial do Cabo e li num jornalzinho local uma matéria sobre ela. No mesmo dia, fui até lá. Emocionadíssima, ouvi seu Gabriel falar durante horas. Ela gostava de contar sua história e eu, quase muda, o ouvi totalmente fascinada. Logo após, decidi usa-lá como tema de um trabalho de conclusão de curso. Passei a visitá-lo com freqüência, o que veio a aumentar minha admiração e aguçar minha curiosidade sobre a vida e obra daquele homem singular, que, despossuído de tudo, sem nunca ter freqüentado uma escola,revelou-se um artista intuitivo de gênio . Pensava, até algum tempo depois, que minha fascinação pela Casa da Flor se resumisse a mero interesse intelectual. O primeiro sinal de que fora atingida mais profundamente foi uma sessão com meu psicanalista, na época, em que, ao descrever para ele as características da poética criação, desandei a chorar convulsivamente. Levei um enorme susto e fiquei realmente surpreendida. porque essa emoção toda?
Comecei, a partir de então, a refletir, a procurar em mim mesma a origem de tal reação, a pesquisar nas profundezas da minha alma. Onde eu me situava naquele contexto, porque essa sintonia sensível com aquela obra tão original? Essa intenção de procurar me entender na relação com o objeto de minha pesquisa levou muitos anos—e dura até hoje. Pouco a pouco, comecei a vislumbrar correspondências entre o que já sabia de mim e os aspectos simbólicos da criação de Gabriel. Tem sido um longo e frutífero aprendizado.