Pesquisa Maritônio













 MARITÔNIO :

“ DO EX-VOTO RÚSTICO AO ANJO BARROCO “


Amelia Zaluar



 DA INFLUÊNCIA DO AVÔ E DA RELIGIOSIDADE DA BISAVÓ


Desde menino Maritônio ficava “maravilhado” com os ex-votos criados pelo avô e pensava: “um dia eu vou ser capaz de fazer uma pecinha dessas”. Com dez anos começou a esculpir, de forma bem rústica, bracinhos, mãos, cabeças. Aos poucos foi evoluindo. Achava tudo fantástico!

“O artista faz aquilo que está à sua volta, as primeiras imagens que fiz foi por isso. Eu via aquilo tudo, ia até o cruzeiro, subia o morro muito alto, via as pecinhas, coisas bem simples, bem rústicas, e ficava maravilhado!
Minha história começou com os ex-votos. Até hoje tem lá algumas peças que fiz. Muitos artesãos na região agora esculpem ex-votos, que são levados, às vezes, para Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero”.

(CD nº 2, fotos 168,169,170,171)

De uma peça com movimento, criada por seu avô, desmontada e em pedaços, Maritônio, aos dez anos, consertou tudo, remontou a engrenagem e colocou a peça em funcionamento. Os parentes começaram a reparar em sua habilidade e diziam que ele tinha puxado ao avô, pessoa de quem admirava os trabalhos e, ainda hoje, se queixa de que “ninguém dava valor a ele, uma pessoa que viveu lá e ficou esquecida”.
Maritônio estudou até o segundo ano do ensino fundamental, numa escola a que ia a pé, andando três quilômetros até chegar à cidade.
“Em meu curso primário, as pessoas me davam livros de arte, eu me interessava muito, gostava de ver Mestre Vitalino, o Aleijadinho, que teve influência muito grande sobre o meu trabalho. Foi o seguimento: a partir dos ex-votos de meu avô para chegar no barroco! Aos quinze, dezesseis anos, nas excursões da escola, em vez de ir para as praias, eu visitava os mosteiros e igrejas. Ia ao Convento de São Francisco [em João Pessoa], muito rico e muito antigo. Do Nordeste é um dos mais antigos. Me influenciou muito! Eu ia pra lá, ficava admirando as imagens barrocas. Foi uma escolha que fiz, mas tudo era influência da religiosidade da minha avó, que morreu rezando, aos cento e três anos. Vem daí minha aptidão para esculpir arte barroca. Desde criança eu via ela rezando muito. Nas paredes da casa tinha muitas molduras de santos. No sítio do meu pai tem uma capelinha com várias imagens antigas. Tenho uma influência religiosa muito forte na questão artística. Desde criança convivendo com isso, tenho essa tendência pra arte sacra. Na minha região não é comum anjos barrocos mas desde criança eu via as imagens barrocas na capital”.


 SURGE UM ARTISTA


Maritônio Sousa Portela, trinta e três anos, nascido em Livramento, no interior da Paraíba, no dia cinco de novembro de 1975, filho de Antônio Portela Neto, agricultor, pedreiro e marceneiro, e Eurídice Sousa Portela, dona de casa e agricultora, é o mais velho dos treze filhos do casal. É pai de duas filhas, Angely, de quinze anos, e Angelice, de sete, cujos nomes começam por angel, sua ligação artística maior.

(CD nº 2, fotos 182 e 135 ou 136, 216)

O primeiro santo que esculpiu foi uma imagem de Nossa Senhora do Livramento, padroeira de sua cidade. Com doze, treze anos, esculpiu para a capela do sítio em que morava, uma Nossa Senhora das Graças, “tosca, bem rústica, mas que ficou com aparência, de um tronco de umburana, que é madeira muito macia, mais macia que o pinho, com uma resistência muito maior ao tempo e ao cupim”. Fez a santa e começou a “tomar gosto”. Sem conhecer as ferramentas apropriadas, resolveu ele mesmo, “escondido da avó”, a preparar os instrumentos, “copiando as facas de mesa, bem antigas, de um aço muito especial, com cabos bem decorados”. Sem mestre, pela observação, foi aprendendo “naturalmente”, a feitura das ferramentas.

Em 2005, percebendo que uma árvore muito antiga que ficava na entrada da cidade havia morrido e que ia ser derrubada, teve a idéia de esculpí-la. Com a aprovação dos dirigentes da cidade, aproveitando a forma do tronco e dos galhos da velha algaroba, esculpiu peixes, tatus, animais mitológicos, corpos nus, olhos e algumas formas abstratas. Os galhos já lhe sugeriam formas, as raízes, pés e um dos galhos, uma mão. Sua obra tornou-se, com o tempo, um cartão-postal da cidade. Ela tem de três a quatro metros de altura.

“Um dia, fui fazer N. Sra. da Conceição e tinha aqueles anjinhos ... Minha avó tem uma imagem bem antiga, aí tem as carinhas. Gostei muito e comecei a fazer os anjinhos com os traços arredondados, muito bom de fazer.Comecei a aperfeiçoar. A família é muito grande, sou o irmão mais velho e nunca faltou criança na família. Eu via meus irmãos pequenos e olhava pra eles e dizia: deixa eu ver seu rosto, sempre me espelhando na forma deles mesmos. Cada vez que eu faço eu vibro, eu gosto muito, não enjôo de fazer. Não tem dois iguais, cada um tem seu momento. Não me baseio numa referência nem no Aleijadinho mesmo! Pego a madeira e vou começando a esculpir, sem me ligar em nenhuma referência. Eu me baseio nas faces dos meus irmãos e como cada um tem um rostinho, uma expressão, cada momento é diferente mas sempre vai sair com a carinha deles. Todo o material já sugere algo e daí a pessoa tem a criatividade, a capacidade de retirar todo o material bruto que está em volta e lapidar.Já está ali, não tem como não estar ali”.
Percebem-se diferentes expressões nas carinhas dos anjos de Maritônio: ora parecem sorrir, ora mostram-se maliciosos, irônicos, sérios, zangados... Mas todos eles revelam uma sabedoria natural e espontânea que, para compreendê-la, é preciso buscar entender sua natureza, fora dos rótulos religiosos e mitológicos tradicionais. O cupido gorducho e o querubim robusto são irmãos espirituais, mais próximos entre si do que dos seus respectivos pais iconográficos.





A trajetória de Maritônio, do artesanato tosco do ex-voto ao anjo barroco, num aprendizado sem mestres, em que foi evoluindo sozinho, usando a observação e a intuição, constata e reforça a idéia de que o artista popular, justamente ele que não aprendeu seu ofício em escolas, que desconhece regras e modelos, esse artista tem uma liberdade na criação que o diferencia dos demais artistas “cultos”, o que torna imprescindível estudar e aprofundar a questão da criatividade. Para o artista popular não há limites! É como um rompimento com o estabelecido, o comum, o normal, o acadêmico! É o novo, o espontâneo e, por isso, o autêntico! O que demonstra , sem sombra de dúvida, o potencial criativo inesgotável do homem simples do povo. A liberdade é o seu guia! Daí, a expressividade ser ,no Brasil, o maior atributo da Arte Popular.




 BIBLIOGRAFIA

_ COSTA, Carla. “Devoção e Festa: Imagens de Mestre Ribeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE/ CNFCP, 2000. SAP nº 89.

_JUNG, Carl Gustav. “O Espírito na Arte e na Ciência”. Petrópolis: Editora Vozes. 1991.
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_ FROTA, Lélia Coelho . Pequeno Dicionário da arte do povo brasileiro. Século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.

_MACEDO, Edilberto José de Macedo. Santeiro dos Gerais das Minas: Manoel Sílvio A. Fonseca. Rio de Janeiro: IPHAN/ CNFCP, 2006. SAP nº 133.

_NAGEL, Alexander. Cherubs, Angels of Love. Bulfink Press Book Little, Brown and Company. New York, 1994.

_TRAVASSOS, Elizabeth e WALDECK, Guacira. Escrevendo na madeira – esculturas de José Heitor. Rio de Janeiro: MinC/ FUNARTE/ CFCP, 1996. SAP nº 61.

_ ZALUAR, Amelia. Timbuca, a Liberdade da Arte. Rio de Janeiro: IPHAN/ CNFCP, 2005. SAP nº 128.

_”Maritônio:do ex-voto rústico ao anjo barroco”. ‘Pesquisa e texto. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2009. SAP nº 149.